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DESCARTES SEM METAFÍSICA

Atualizado: 10 de jun. de 2022


Prof. Dr. Joceval Bitencourt


“De tout cela il faut maintenant conclure, non

point certes qu’on ne doive étudier que

l’arithmétique et la géométrie, mais seulement que

ceux qui cherchent le droit chemin de la vérité ne

doivent s’occuper d’aucun objet à propos duquel

ils ne puissent obtenir une certitude égale aux

démonstrations de l’arithmétique et de la

géométrie”.(Descartes – Règles pour la direction

de l’esprit – Règre II



“Todavia, esses nove anos escoaram-se antes que eu tivesse tomado qualquer partido, com respeitos às dificuldades que costumam ser disputadas entre os doutos, ou começado a procurar os fundamentos de alguma Filosofia mais certa do que a vulgar” (Descartes, Discurso do Método).


Descartes dá a público estas linhas em 1637, data da publicação do Discurso do Método, mas, refere-se a um período anterior, que corresponde aos anos de 1619-1628, período em que se deu a tomada de decisão de abandonar os livros e o convívio com os homens cultos para viajar em busca de entender a comédia que se desenrola no grande teatro do mundo.


“E, em todos os nove anos seguintes, não fiz outra coisa senão rolar pelo mundo, daqui para ali, procurando ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se representam” (Descartes, Discurso do Método).


Entre 1629 e 1633, Descartes escreve o Le Monde ou Traité de lalumière. Nestes anos, desde 1619, toda a preocupação especulativa de Descartes está voltada para as ciências. Seus interesses intelectuais estão direcionados para a matemática, a geometria analítica, a óptica, a física, os fenômenos atmosféricos, a biologia e a fabricação de lunetas. O que interessa a Descartes é compreender e dar conta da ordem do mundo físico, construir um novo sistema do mundo a partir de uma reflexão puramente científica, sem nenhuma especulação metafísica.


“As preocupações metafísicas aparecem bastante tarde no pensamento de Descartes” (Koyré, Considerações sobre Descartes).


Desta forma é possível afirmar que há um bom indício de que a reflexão científica de Descartes é anterior a sua reflexão metafísica. Ele faz ciência, sem, em nenhum momento, buscar os seus fundamentos últimos. Assim, nesta época, está ausente da reflexão de Descartes qualquer interesse filosófico pelas razões justificadoras da natureza de Deus e da Imortalidade da Alma. Reflexões desse tipo só aparecerão bem mais tarde, mais especificamente, no Discours de laméthode (1637), de forma ainda restrita, e nas Meditationes de Prima Philosophia (1640), de forma madura e plena.


Nesse enfrentamento entre a pura ordem da razão natural e as leis que regem o universo, sem nenhum embasamento metafísico, encontram-se os fundamentos da ciência cartesiana. Se esta busca, mais tarde, encontrar na metafísica, melhor em Deus, uma base segura e certa para sua sustentação, é assunto para outra reflexão, num outro momento.


Entre os séculos XV e XVII, período em que, sem muita precisão, inicia-se o nascimento do mundo moderno e o fim do mundo que o precede, processa-se uma verdadeira revolução na história da humanidade. Muitos são os movimentos transgressores ocorridos nesse período. Talvez não seja de todo despropositado afirmar que perpassa por eles um espírito de reforma: querem emendar, melhorar, aliviar, mas retomando os fundamentos, voltando aos princípios, querem re-formar, re-fazer, re-fundar (Ver a introdução de Moutaux em A Utopia – um convite à filosofia).


Há conquistas que, iniciadas no século XIV, se estendem até o século XVII. Ideias e atitudes que já anunciam o declínio da Idade Média, que alimentam o espírito humanista e que contribuem para o surgimento de um novo tempo: Dante (1265-1321), Petrarca (1304-1374) e Boccaccio (1313-1375), por exemplo, tornam o uso do “vulgar” tão respeitado quanto o latim e, assim, alargam o alcance de seus escritos. Textos gregos são retraduzidos ou traduzidos pela primeira vez (a totalidade dos Diálogos de Platão, por exemplo); a Reforma luterana marca a divisão do cristianismo ocidental; Copérnico (1473-1543), Galileu (1564-1642) e Kepler (1571-1630) renovam a astronomia. Acrescenta-se a matematização da natureza.


É neste burburinho cultural que se encontra Descartes, trabalhando silenciosamente, a ruminar o seu tempo, a buscar saídas para a reconstrução, melhor, a construção de um novo edifício do saber, que possa superar e, ao mesmo tempo, suportar as grandes questões emergidas na crise deste período. Caberá a Descartes, de certo modo, o papel de fechar as portas do passado e abrir as do futuro; caberá a ele a tarefa de traçar a nova cartografia da razão, aquela que indicará os próximos passos da humanidade.




Joceval Andrade Bitencourt é doutor em Filosofia. (www.joceval .com.br)



 
 
 

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