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EM TEMPOS DE CRISE, PRECISAMOS DA RETÓRICA


Prof. Dr. Lucas Nascimento


As crises humanas são normalmente provocadas ou solucionadas por meio de uma retórica. Há milhares de anos, os humanos vêm se utilizando de sofisticadas estratégias discursivas para ajudar a empreender a guerra ou a paz, a justiça ou a injustiça, o amor ou o ódio. Foi assim dos grandes impérios - antes mesmo de Alexandre, o Grande -, aos pequenos reinos e governos que ascenderam e se despedaçaram ao longo da história. No século XXI, não podemos pensar que seja diferente, nossas crises recentes, bem no seio de nossa democracia liberal, são sobremaneira crises de retóricas; e contra a retórica somente a própria retórica. Isso me leva a defender que precisamos lançar mão sabiamente dessa arte milenar para ler nossa época, nos vacinar contra discursos manipuladores e construir narrativas mais prudentes que nos ajudem a caminhar com o pé no chão em dias tão conturbados como os nossos.


No século passado, o cerceamento das informações foi um grande recurso dos governos autoritários e totalitários, todavia, na era das redes sociais, a manipulação mais perigosa não é necessariamente essa que nossos pais sofreram, mas é o modo como os novos retores direcionam o olhar das massas para interpretarem as informações de maneira absurdamente conveniente. Isso porque as informações são dados brutos que precisam ainda ser tratados, colocados em um contexto e interpretados à luz de uma narrativa, a qual muitos formadores de opinião, penso aqui mais nos políticos, logo cuidam em oferecer as lentes enviesadas a seu público a fim de manipular o olhar. Então, se a democracia é o governo da palavra, seu maior inimigo é uma opinião pública manipulada retoricamente. A esse respeito, a retórica pode nos ajudar sendo um antídoto para o veneno da manipulação.


Alguém cético deste meu posicionamento poderia afirmar que a própria retórica seria manipuladora. Sim, há retóricas manipuladoras. Mas a retórica em si não o é: assim como não se diz que a medicina é assassina só porque alguns médicos já a utilizaram para fins inescrupulosos, como aconteceu nos campos nazistas, não é de bom senso dizer que a retórica é manipuladora. Na verdade, a retórica é uma arte (techné), e enquanto tal, pode ser utilizada para diferentes fins, mesmo os mais perversos. No entanto ela cumpre sua real vocação servindo ao bom, ao belo e ao verdadeiro. Aristóteles, o grande sistematizador da retórica, dizia que essa arte deveria ser utilizada com vistas ao que é justo. E se ela tem suas armadilhas, ela também oferece a possibilidade da desmitificação.


Assim, a retórica é antes de tudo uma formidável hermenêutica, ela nos oferece meios de interpretar os diferentes discursos e mentalidades. Quem argumenta, por exemplo, seja a respeito da melhor dieta a se fazer até a política econômica a ser adotada pelo governo, precisa saber interpretar os valores e os estados de espírito de seu auditório. Pensava assim Aristóteles, lá na Grécia Antiga, tanto que podemos aprender, em sua Retórica, os tipos de premissas adequadas para cada tipo de auditório; e também compartilha desse mesmo pensamento Chaïm Perelman, o qual, em meados do século XX, revigorou os estudos da argumentação com a Nova Retórica, dando fundamento a uma importante escola da hermenêutica jurídica contemporânea. Infelizmente, embora esses sejam ensinamentos antigos, boa parte das pessoas imagina a retórica apenas como a arte de construir discursos, mas ela é, antes de tudo, um conjunto de técnicas interpretativas da realidade humana.


Em uma época em que retóricas antidemocráticas, anti-intelectuais e ressentidas vêm ganhando multidões de adeptos, precisamos da retórica. Aqui no Brasil, a impressa tem sido sistematicamente atacada, as demandas por direitos têm sido, inúmeras vezes, discutidas no grito por grupos identitários e a ciência vem sendo objeto de negacionismo. Este caso, vale exemplificar, é deveras curioso, porque, mesmo com tantas evidências científicas, cerca de 11 milhões de brasileiros acreditam que o formato da Terra é plano1; e já houve, em 10 de novembro de 2019, a primeira Convenção Nacional da Terra Plana, batizada de Flat Con. Mas como cientistas e professores podem dissuadir essas pessoas dessas ideias?


Na ansiedade de combater esses discursos antiquados, intelectuais indignados têm se levantado a fim de dar voz à lucidez. Bons argumentos são apresentados, com base em sérias pesquisas e em linguagem acessível, mas junto a isso são usados também todo um arsenal de ironias, rotulações e demonizações desnecessárias. E, mesmo com certa razão, não conseguem todavia ser ouvidos, assentando ainda mais tijolos no muro da incompreensão e do ressentimento. Francamente há um sério problema aí, e preciso dizer que é com os porta-vozes da lucidez. Ora, temos utilizado uma retórica racionalista para tentar convencer um auditório sentimentalista. Essa conta não fecha, e nem pode fechar. Por quê? Não basta gerenciar informação, fazer um trabalho no campo das ideias, é necessário, todavia, gerenciar relação, com uma boa construção persuasiva no campo dos afetos das pessoas.


Falta, então, uma retórica adequada para a demanda de nosso tempo (penso aqui na retórica enquanto teoria da persuasão argumentativa). Por enquanto, esboçarei apenas duas coisas que nos faltam dessa arte: primeiro, falta uma boa compreensão do que é o ser humano a quem se destina a persuasão. O argumentante de nossa época precisa se perguntar: "que ser humano é esse que quero persuadir?”. Legado do racionalismo, a visão que se tem do ser humano é de um sujeito racional e que basta lhe apresentar as evidências ou demonstrar com argumentos lógicos que ele será convencido do ponto de vista defendido. Engano! Não é apenas uma questão de mostrar a verdade ou as evidências, como quem demonstra a um matemático o erro em um cálculo de álgebra. Não é assim. Somos seres mais afetivos do que Descartes gostaria que fôssemos, Pascal já nos apontara isso no século XVII e a neurociência vem clareando ainda mais essa compreensão. Fato é, muita gente de boa vontade está dizendo a coisa certa, mas do modo errado, está se preocupando muito com o que dizer e se esquecendo do como dizer. Por isso o efeito tem sido bastante contraproducente.


Segundo, falta uma boa compreensão do mundo do outro. Duas pessoas que pensam de maneira divergente a respeito de uma questão, como a legalização da maconha ou descriminalização do aborto, tendem a se fechar no círculo ideológico de seu grupo e a fazer julgamento a respeito das motivações e das razões do adversário sobre o tema. Na verdade, criam simulacro sobre o pensamento do outro. Isso gera o fenômeno da interincompreensão entre ambos os envolvidos. Por isso é necessária a empatia ativa, em que o eu entre no mundo do outro, veja com os olhos dele, sem todavia perder seu lugar de fora, o que é condição de possibilidade tanto de uma compreensão razoável como de um diálogo argumentativo prudente e mais eficaz.


Sim, mesmo em tempos de crise, precisamos deixar o pânico de lado, ou talvez trocá-lo pela perplexidade - já que esta é mais humilde e perspicaz, como disse Yuval Noah Harari. Por mais que pareça clichê, acho que precisamos de atitudes realmente amorosas para com o outro (o adversário), gestos que promovam o valor do encontro e da liberdade. E como isso poderia se dar? Através da linguagem e, de modo intencional e prático, por meio da retórica, a qual pode ser dialógica, prudente e sábia para tentarmos minar a sedução de discursos antiquados, perigosos e antidemocráticos que têm seduzido nossa geração, à direita e à esquerda. Para tempos de crise como o nosso, a mudança deve começar em nosso próprio discurso.




Lucas Nascimento é doutor em Língua e Cultura


 
 
 

1 Comment


Unknown member
May 23, 2023

ótimo artigo, boa linguagem e de fácil entendimento.

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Âncora 1
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